A Carta

 

“Saudações de Cagliari,

Entre as cores da Via Picciani, onde cada passo se transforma em poesia.”

Estava escrito ao lado da porta quando eu cheguei. Um grande quadro com formato de envelope de carta sustentava as palavras. A rua estreita de chão de pedras, casas de sobrado com flores pelas janelas e plantas ao lado das portas me convidavam a caminhar em poesia.
— Foi você quem fez esse quadro? – perguntei curiosa para minha irmã, que havia me buscado no aeroporto, em meu primeiro dia de férias.
— Não, quando aluguei a casa já estava aí – respondeu Sole, enquanto abria a porta para entrarmos com minhas malas.
— O dono da casa é poeta?
— Não sei, ele contou que o filho mais novo fez esse quadro e pregou na entrada da porta, quando a família se mudou para uma casa maior.
— Cartas, são coisas tão raras que essa já se torna a própria poesia do lugar, antes mesmo de caminhar pela rua.
— Você está muito inspirada, Luna!
Rimos alegremente e entramos. A casinha de sobrado nos aguardava feliz, com pequenos vasos de plantas ao lado do sofá.
Tomei um banho e desci para caminhar pela rua, enquanto Sole voltava para a loja de artesanato, onde trabalhava.
Antes de dar o primeiro passo, voltei meus olhos para o envelope que enfeitava a parede ao lado da porta de entrada. Mas continuei meu caminho observando detalhes entre portas e janelas. Voltei sem pressa. Da mesma maneira, abri a porta, entrei e tornei a fechar atrás de mim.
— Desculpe incomodar – eu ouvi uma voz grave do lado de fora, antes que eu virasse a chave do lado de dentro.
Abri a porta de madeira devagar e avistei um rapaz de camiseta azul bem em frente.
Sem que eu tivesse tempo de dizer alguma palavra, ele continuou.
— Lorenzo. Lembra de mim?
— Sim? – eu respondi na dúvida.
— Seu irmão falou muito de você, quando nos encontramos, bem, é claro – complementou Lorenzo com um leve sorriso. – Fiquei curioso em conhecer você melhor, quer dizer, eu não sou muito bom com as palavras quando tenho que falar.
Lorenzo me mostrou um envelope.
— Eu vim aqui para pedir ao seu irmão que entregasse para você. Mas, de longe, vi quando você descia a rua até entrar na casa. Tomei coragem e cheguei até aqui.
Ele esticou o braço para que eu, ainda meio escondida por trás da porta, alcançasse o papel que guardava suas palavras tímidas.
Eu toquei aquele pequeno baú de mistérios que incitava minha curiosidade. Aceitei segurá-lo e trazer para mais perto de mim.
— Obrigada – foram as sílabas pronunciadas na única palavra que brotou de mim naquele momento.
Dessa vez, Lorenzo se abriu em um largo sorriso, que pude observar nos rápidos segundos que me restaram antes dele sair em um movimento apressado.
— Você é muito mais bonita de perto, Sole!
Ainda ouvi Lorenzo balbuciar sem medo, ao voltar seu rosto para mim, já a caminho de volta na Via Picciani.
Estava resolvido o mistério. Mesmo sabendo que a carta era para minha irmã, tudo me instigava a ler o que ali estava inscrito em profunda admiração, para alguém, que não era eu. Aquele pequeno baú de papel acomodava, com cuidado, a timidez de Lorenzo, sua coragem de mostrar seu sentimento, nem que fosse por um excêntrico, fora de moda, desatualizado, objeto de museu, eternizado em uma parede da casa 24 na Via Picciani.
Fechei a porta devagar, admirando aquele envelope.
Não fui tão corajosa quanto Lorenzo. Coloquei, cautelosamente, o envelope fechado em cima da pequena mesa redonda em frente à porta da entrada.
— Lorenzo é muito tímido, uma boa companhia – declarou Mare, meu irmão, enquanto saboreávamos nossa pizza, acomodada no tabuleiro, ao lado do envelope esquecido sobre a mesa. – Não sabia que estava apaixonado por você, Sole.
— Vi Lorenzo com você no dia do jogo de futebol, na quadra da sua faculdade, mas não prestei muita atenção nele – confessou Sole. – Não é muito meu tipo – terminou ela sem timidez.
— Quando o jogo acabou e você quis ir embora, ele me perguntou se você ia para casa sozinha, agora é que estou entendendo a pergunta – complementou o irmão.
— Você não vai ler? – perguntei mais curiosa do que ela.
Sole pegou o envelope, abriu sem pressa, tirou um papelzinho branco de dentro e leu em poucos segundos.
— Ele é muito fofo –, assumiu minha irmã – mas não é o meu tipo. – E para que carta, se podemos mandar mensagens pelo celular?
— Não vou dizer tudo isso, se ele perguntar – disse Mare, conjecturando com humor.
— Diz que eu sou tímida e não fiz nenhum comentário sobre a carta – elaborou uma resposta rápida.
Sole deixou o papelzinho aberto ao lado do envelope, enquanto saboreava mais um pedaço da pizza.
À noite, enquanto minha irmã e meu irmão dormiam, desci as escadas sem fazer barulho e me peguei em frente ao pequeno papel branco largado sobre a pequena mesa redonda. Abri com cuidado, li rapidamente e realoquei aquele objeto raro, impregnado de palavras.
Na noite seguinte, minha irmã saiu para um encontro com seu possível namorado futuro, meu irmão saíra com uns amigos do time de futebol, e eu, talvez, fosse rever algumas amigas de infância. Talvez!
Nós três nascemos em Cagliari, mas há cinco anos, meu pai e minha mãe foram para Roma com boas oportunidades de emprego. Eu, a mais nova, os acompanhei. Mas em todas as férias da faculdade, me encontrava com meus irmãos, que preferiram a vida calma de Sardenha.
Cheguei no lugar marcado, um restaurante, que alinhava mesas redondas na calçada, na rua logo ao lado da nossa, com alguns minutos de antecedência. Escolhi uma, sentei-me, fingindo descontração, e aguardei ansiosa que Lorenzo chegasse, no lugar sugerido no papel da carta que ele havia me entregado. Não sabia bem por que estava ali, saboreando uma taça de vinho branco demi-sec. Seria porque Lorenzo me confundira com Sole, ou porque ele não era o tipo dela, ou, simplesmente, porque eu queria dar continuidade a essa história?
Lorenzo surgiu lentamente no fim da rua. Eu bebi mais um gole do vinho, sem afastar meus olhos do movimento de seu corpo ao caminhar.
— Boa noite! – ouvi a voz rouca e suave de Lorenzo, após deglutir o terceiro gole da bebida italiana.
— Boa noite! – saudei sem constrangimento.
— Posso me sentar?
— Claro – eu respondi observando o rosto e os cabelos esvoaçantes de Lorenzo.
— Pensei que você não viesse – declarou após acomodar-se em frente a mim.
Nesse momento, notei que ele usava óculos redondos com lentes bem grossas.
— Não quer me acompanhar no vinho? – perguntei fazendo charme.
— Claro, sou especialista em vinho. Qual você está tomando?
— Prova e me diz – sussurrei.
Lorenzo me olhou longamente, acho que procurando uma palavra.
Ele pegou a taça que eu lhe oferecia em minha mão, cuidadosamente, levou até seus lábios rosados, acentuando seu rosto que já fervia, mesmo antes do álcool aquecer seu sangue.
— Demi-sec – ele declarou após um gole deglutido sem pressa.
— Expert em sabores – concordei com ele.
Lorenzo enrubesceu mais ainda.
O garçom se aproximou e ele pediu uma taça para ele.
— Qual o motivo desse nosso encontro? – perguntei para provocá-lo.
Sinceramente, eu não sabia aonde eu queria chegar.
— Qual o motivo para você estar aqui? – ele respondeu com outra pergunta.
Pensei antes de transformar meus pensamentos em palavras. No entanto, abri minha bolsa, retirei o envelope que havia siso abandonado sobre outra pequena mesa.
Lorenzo voltou seus olhos para o papel, e retornou para os meus. Dessa vez, demorou a fazer qualquer outro movimento que não fosse penetrar em minhas pupilas.
Agora, o jogo havia mudado. Eu fiquei sem palavras e sem chão.
Ele pegou o envelope da minha mão com leveza, abriu, retirou a breve carta. Releu e tornou a olhar para mim. Lorenzo aproximou seu rosto do meu devagar. Eu não reagi. Fechei meus olhos e esperei sentir os lábios dele nos meus. A mão de Lorenzo alcançou a minha com segurança, e só depois devorou minha boca com a dele.
Perdi a noção do tempo. Lorenzo era expert em sabores, principalmente do beijo.
Quando afastamos nossos rostos para respirar, eu me ajeitei na cadeira, ele retomou sua postura, e nossas mãos se soltaram sem vontade.
Bebi mais um gole do vinho para me recuperar.
— Por que achou que eu não viria? – perguntei.
— Porque ninguém mais escreve cartas para declarar seus sentimentos, a não ser os poetas, ou quem tem miopia elevada para ler mensagens pelo celular – murmurou –, ou porque eu não sou o seu tipo – ele intuiu.
Eu alcancei o papel da carta ao lado da taça de vinho de Lorenzo e li, mais uma vez. As letras bem grandes, agora, despontavam aos meus olhos. Lorenzo era muito bom com poucas palavras.
Tirei meu celular da bolsa, acessei minhas fotos e mostrei para ele.
— Qual delas sou eu? – perguntei mostrando uma fotografia em que eu, Mare e Sole estávamos abraçados e sorrindo, em close.
Lorenzo olhou com cuidado e levantou seu rosto para mim. Recostou-se, apoiou seu braço direito nas costas da cadeira, buscando o melhor ângulo do corpo para me desenhar com suas pupilas, protegidas por lentes grossas em uma armação redonda, que enfeitavam ainda mais seu rosto.
— Você é a que está aqui, saboreando vinho branco comigo, a que vê poesia em uma carta, e que beija com o sabor louco, sem pudor, de uma deusa.
A essa altura, banhados pelo vinho, e pela luz da lua que iluminava nossa pequena mesa, não precisávamos materializar palavras, somente os sussurros de prazer causados pelo sabor afrodisíaco de nossos beijos.
Voltei para Roma após as minhas férias. Mas antes de ir, ajudei Lorenzo a colocar um grande quadro, com formato de envelope de carta, do outro lado da porta da casa 24 na Via Picciani, com as palavras:

“Saudações de Cagliari,

Entre as cores da Via Picciani, onde cada passo transforma Luna em pura poesia.”

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