A bola veio na minha direção. Com as duas mãos espalmadas uma sobre a outra, meus antebraços rebateram. Ela voou para Leilinha, posicionada em frente à rede. Muito ágil, ela saltou e cortou para o campo adversário. A bola cansada não ultrapassou a rede, voltou lenta, prostando-se ao lado da jogadora.
O lado bom era que aquele era só o primeiro set.
Tudo começou havia umas semanas, na areia branquinha da praia. Eu e Leilinha ficávamos sentadas assistindo o jogo de vôlei dos rapazes. Eram dois de um lado e dois do outro. Marquinho era o mais ágil. Sacava, cortava, defendia. Mesmo de longe, eu sabia a cor, o brilho, o abrir e fechar das pálpebras. Como em câmara lenta, eu acompanhava o movimento de seu corpo suado, seus braços, seus lábios rosados. Seu sorriso exibindo os dentes pintados como nuvens branquinhas de um sábado de sol.
– Boa! – Gritou Leilinha eufórica com a jogada de Zeca.
Marquinho ouviu, de longe, a torcida de duas fãs do esporte. Parou e virou seu corpo em nossa direção. Meus olhos foram atingidos pelos dele. Eu acabava de ser descoberta em meu devaneio. Ele sorriu de um jeito diferente. Fez um leve aceno com seu rosto tentando me tranquilizar que não seria o delator de tamanha admiração, mas que apreciava intensamente aquele deslumbre.
– Eu só queria jogar como eles – balbuciei tentando disfarçar, para que ninguém notasse o que havia se passado, enquanto as batidas de meu coração tentavam se estabilizar.
– Bem, eles são dois de cada lado – deduziu Leilinha. – Porque não entramos na quadra com eles, podemos dar uma força – terminou ela, com um leve sorriso, assumindo o alto nível da sua autoestima.
Eu não tinha dito “jogar com eles”. Olhei para ela surpresa. Ao mesmo tempo que achava uma ideia muito louca, já que éramos somente do bate bola com algumas colegas na areia da praia, me joguei por inteira na possibilidade de ficar ao lado dele.
– Você vai para o campo do Zeca, eu vou para o do Marquinhos – defini logo o time, para que não houvesse equívocos.
Deixamos nossos assentos improvisados, sacudimos a areia dos nossos shortinhos e entramos na quadra, poderosas, uma para cada lado, como combinado. Já sabíamos seus nomes de tanto ouvir um chamar o outro para as jogadas, então, só restava nos apresentar.
– Podemos jogar também? – Foi logo se oferecendo, Leilinha – Três de cada lado.
Zeca ficou sem conseguir responder com a nossa presença inesperada.
Marquinho apertou um pouco suas pálpebras e lançou seus olhos sensuais nos meus.
– Claro que podem – afirmou ele com sua voz rouca e macia.
Enquanto eu tentava recuperar meu chão, na areia quente e fofa, Leilinha já estava posicionada ao lado de Zeca.
Marquinho se aproximou mais de mim e pegou minha mão direita com tanta segurança que não tive tempo de cair sentada.
Sua respiração invadiu a minha.
– Marquinhos – ele se apresentou bem perto do meu rosto.
– Camila – eu falei fingindo naturalidade.
– Vamos começar – ele alertou os outros jogadores, que se posicionavam sem prestar atenção em nós.
Então, eu e Leilinha, recebendo a bola, levantando ou sacando, não tivemos muito sucesso. Mesmo assim, insistíamos acreditando que estávamos contribuindo nas jogadas.
Saímos juntos da quadra já perto de meio-dia.
– Com o tempo, vocês vão pegando o jeito – disse Marquinhos enquanto caminhávamos.
Pegando o jeito? Ele podia ter dito isso de outro jeito. Aliás, jeito para usar palavras não era sua especialidade, o que não excluía suas outras habilidades.
Graças ao calor de quase 40 graus, fomos até uma lanchonete saciar nossa sede. Foram alguns minutos de risos e descobertas.
Marquinhos falava muito pouco, apenas o necessário, o que era plenamente compensado pelo olhar sedutor, silencioso, tradutor de seus pensamentos.
Zeca levou Leilinha até o apartamento em que ela morava. Marquinhos me acompanhou até a entrada do meu.
Minutos de silêncio, apenas nossos passos lentos emitiam algum som ao deslizar pela calçada. Ele se aproximava de mim vez ou outra. Eu me pegava bem junto dele sem sentir.
Eu me desequilibrei levemente em um sutil desnível da estreita calçada que nos conduzia. Marquinhos me agarrou da mesma maneira com que recebia a bola em seus braços. Sua boca, enfeitada daqueles lábios grossos e rosados, então, se abriu e invadiu a minha, que já estava pronta para devorar a dele com a mesma perfeição.
Foram segundos de devaneio. Éramos somente eu e ele. O resto do mundo havia parado, somente nós dois estávamos em movimento.
Durante as duas semanas seguintes nos encontramos após o jogo de sábado, e à noite, e nos dias em que eu saía mais cedo da faculdade.
Marquinhos falava pouco e quando acontecia de arriscar alguma palavra, nem sempre acertava no melhor sentido.
– Vocês ainda vão pegar o jeito, – pronunciou, mais uma vez, no terceiro sábado, a mesma oração que repetia após o jogo dos sábados anteriores.
Eu parei em frente a ele para que Marquinhos pudesse olhar para mim.
– E qual é o jeito? – Perguntei sem titubear.
Marquinhos ficou sem encontrar a resposta.
– O seu jeito? – Insisti com outra pergunta.
– Vocês só precisam treinar um pouco – respondeu ele de outro jeito.
– Estamos atrapalhando o jogo de vocês, não é?
– É você que está dizendo isso.
– Eu vi o olhar do Zeca pra você quando perdi uma bola e foi ponto para o outro time.
– Na verdade, nunca mais jogamos sério desde que vocês e as outras meninas se misturaram nos nossos times. Não sou só eu que diz isso. Ainda falta muita técnica pra vocês – quis melhorar o discurso Marquinhos, sem perceber que não era muito bom nisso.
Eu fiquei em silêncio. Respirei fundo. Realmente, Marquinhos não sabia usar as palavras. As cenas de amor com ele, os beijos desvairados, as palavras que não faziam falta nos momentos de desejo, e os risos quando nos contagiávamos de alegrias inexplicáveis, tudo isso, desfilou na minha memória como uma canção de samba enredo.
Mas as últimas palavras de Marquinhos mexeram com meu amor-próprio, ou autoestima, como dizia Leilinha. Coisas do passado que a terapia estava me ajudando a superar, por isso, não havia mais nada que Marquinhos pudesse melhorar com as palavras, nem mesmo o toque de suas mãos ou seus beijos inigualáveis.
– Tudo certo! Não estarei mais no seu time – pronunciei calmamente cada palavra.
Ele achou graça. Pensou que estava brincando. Marquinhos se aproximou de mim, como costumava fazer quando terminava o jogo, para irmos em alguma lanchonete.
– Eu vou pra casa – declarei antes que ele pegasse a minha mão.
Ele inclinou a cabeça para o lado e fechou um pouco as pálpebras esperando mais alguma informação.
– Se você não consegue ver a minha alma com a sua, não podemos formar um time, nem na quadra, nem em qualquer outro lugar.
Eu virei sem me despedir, procurei ser rápida. Nada poderia me abater, nem aqueles olhos que emitiam raios luminosos certeiros nos meus.
Ele não me procurou. Eu não liguei para ele.
No dia seguinte, encontrei um treinador de voleibol disposto a nos preparar para um jogo decisivo: Elas X Eles. Leilinha adorou a ideia da revanche, o que eu chamaria de determinação, ou super autoestima. Nos reunimos com as meninas que também se misturavam aos rapazes na areia da praia, abrimos o jogo, e elas toparam na hora. Contratamos o treinador.
Fábio ensinava todas as estratégias para fazer as jogadas e melhorar nosso aproveitamento físico. Treinamos todos os dias à noite, durante duas semanas. Eu não media esforços para me transformar na jogadora que um dia quis ser.
Durante essas duas semanas, eu e Marquinhos não nos falamos, mas eu e Leilinha estivemos na quadra para convidá-los a jogar conosco e definirmos as regras do jogo (bem diferentes das aplicadas aos jogos oficiais). Todos concordaram com um leve sorriso de vitória antecipada.
– Estaremos prontos para receber vocês – disse Zeca com toda educação.
Marquinhos nada disse. Inclinou sua face em um leve ângulo e me atingiu com seus olhos intensos.
Leilinha, com sua super autoestima, ainda se encontrava com Zeca, e antes de deixarmos a quadra, fez questão de beijá-lo demoradamente, para quem quisesse ver, principalmente as novas fãs que assistiam o jogo deles.
Se não fossem por meus pés que me conduziram até a calçada, minha vontade era de ficar, abraçar e me lançar por inteiro na boca de lábios sedentos do melhor jogador de voleibol que conhecera até aquele momento, sem precisar desperdiçar palavras.
Quando os rapazes chegaram na quadra, no dia marcado para o grande jogo, nós já estávamos nos aquecendo, enquanto Fábio, muito tranquilo, vez ou outra, nos dava alguma instrução.
Os jogadores entraram sem pressa, acenaram para nós no lado do campo reservado para eles. Marquinhos inclinou seu rosto para o lado direito, fechou um pouco as pálpebras para focar melhor em meus olhos e exibiu um discreto sorriso. Linguagem que só nós dois sabíamos decifrar.
O primeiro apito do juiz abriu o jogo. Uma torcida de moças e rapazes vibravam com as jogadas.
Marquinhos recebia, bloqueava e levantava a bola para Zeca, em seu super salto cortar. Eu levantava a bola, Leilinha decidida cortava. Improvisamos nossos times com seis jogadores e jogadoras, de cada lado.
A partida foi dura. Eles iam ganhando, até que Fábio pediu tempo e nos deu um ultimato:
– Esse jogo é de vocês! Vocês são as Super Heroínas desse Planeta! Voltem e sintam-se vencedoras, seja qual for o resultado.
O juiz apitou. Entramos com toda garra. Após alguns minutos, faltando poucos segundos para o fim do jogo, precisávamos de um ponto para o empate.
Marquinhos se posicionou em frente a mim. Por alguns instantes, nossos olhos se encontraram. Estaríamos medindo forças, energia ou desejo?
Leilinha sacou. A bola disparou por cima da rede e alcançou o campo de areia. Um jogador conseguiu receber e passar para Marquinhos, ainda em transe. Ele fez o que pôde. Zeca também. A bola confusa voltou para o campo deles.
Enquanto as jogadoras comemoravam, eu, sem entender bem onde estava, me mantinha na mesma posição. Marquinhos voltou-se para mim, inclinou seu rosto levemente para o lado direito, focou seus olhos nos meus e sorriu. Eu respondi com um movimento singelo dos meus lábios. Naquele momento, as palavras não ousavam surgir. Somente nossas almas se viam e se falavam.
– Empatamos! – Leilinha me acordou com um abraço eufórico.
Fábio se uniu a nós para comemorarmos nossa vitória.
Os rapazes nos cumprimentaram com modéstia. Marquinhos segurou a minha mão como se não quisesse mais soltá-la. Eu também não queria.
Mas a alegria contagiante acabou nos separando.
Marquinhos saiu da quadra com passos lentos. De longe, ainda vi uma garota da torcida se aproximar dele, e fingi não me importar quando eles se beijaram.
À noite, recostada na minha cama, recordava aquele dia. Respirei fundo. Agradeci.
De repente, o som do celular anunciou que alguém queria falar comigo. Eu alcancei o telefone. Libertei meu sorriso, não sei se de surpresa ou alegria ao ler na tela: MARQUINHOS.
Excelente texto!!!!
Que bom que você gostou, Antônio!