Obrigada pela dança!

Eu cheguei animada, o sanfoneiro não parava de tocar, a pista de dança se enchia de casais e eu, sem constrangimento, soltava meu corpo naquele ritmo, sozinha, sem parar. Havia deixado meu par de lado, quando o vi se agarrando com outra, por trás de uma árvore, quando estava indo para a festa da nossa rua. Eu e Francisco tínhamos o dom da dança, por isso o forró nos proporcionava o status de melhor casal forrozeiro em todas as festas juninas.
– Ritinha, deixa de ser tola, é só um beijo – aconselhava minha melhor amiga da escola e das festas.
– Maria, não estou preocupada com o agarro que acabei de presenciar vindo para cá. Comigo só faz uma vez. Ser somente meu par na dança, estaria tudo bem, se ele não tivesse me agarrado em um único impulso, por trás da mesma árvore.
– E você gostou?
– Muiiiiito. Esse é o problema.
– Do que adianta tanto orgulho? Se estivesse dançando com você, não estaria grudado com a outra do beijo.
– Ele que fique com ela! Não preciso dele.
Soltei as palavras sem nem mesmo pensar no que estava falando.
O sanfoneiro não parava. E eu decidi me jogar na pista de corpo e alma.
De repente, alguém, no meio dos casais que se amontoavam, segurou meu ombro e me fez virar, sem que eu perdesse o ritmo do forró. Um rapaz me agarrou em um só movimento e me conduziu com toda destreza pelo chão de cimento que vibrava com o som da sanfona, da zabumba e do triângulo.
Eu me entreguei. Só tive tempo de olhar seu rosto desconhecido, rapidamente. Mas, afinal, a vida é feita de momentos. E eu nada tinha a perder.
Seus passos não eram perfeitos, mas ele me conduzia com tanta segurança que eu simplesmente me deixei ser levada na música.
– Zé Antônio.
Ele falou bem perto do meu ouvido para que eu pudesse ouvir.
– Ritinha – eu me apresentei.
– Até que enfim consegui dançar com você.
– Você é novo aqui na rua?
Perguntei tentando me lembrar de sua fisionomia nas redondezas.
– Moro na outra rua há alguns meses. Vou sempre às festas juninas do bairro. Danço pouco, mas observo muito.
Continuávamos conversando com poucas palavras, sem sair do ritmo, e a cada movimento da dança, Zé Antonio aproximava mais o seu corpo do meu.
Nós transpirávamos de calor, o que não nos impedia de colar nossos corpos pulsantes.
Meu rosto se apoiava exatamente no pescoço molhado de Zé Antônio e eu podia sentir um cheirinho bom de perfume misturado com suor.
– Desculpe se eu não danço tão bem – sussurrou ele em meu ouvido, deixando sua respiração esquentar meu pescoço e arrepiar meu corpo.
A essas alturas, a dança era a única coisa que não estava em jogo. Eu me entregava sem sentir, deixava que ele me levasse para onde ele queria, meus pés moviam-se por vontade própria. Eu estava em outra dimensão.
De repente, ele parou de falar para que seus lábios, escondidos por trás dos meus cabelos, pudessem aquecer mais ainda meu pescoço. Eu fechei os olhos e lentamente virei meu rosto para que nossas bocas se encontrassem. Zé Antônio beijava muito melhor do que dançava, mas nossas bocas quentes e molhadas, mergulhadas uma na outra, não percebiam isso.
Eu não queria que nossos lábios se afastassem, nunca mais. Acho que ele também.
Após alguns minutos incontáveis, Zé Antônio, ainda segurando minha mão e conduzindo meu corpo na dança, afastou seu rosto minimamente para poder olhar em meus olhos.
– Eu tenho que ir – sussurrou ele.
Eu, com meus lábios molhados, colei minha boca na dele como resposta. Dessa vez, Zé Antônio devorou minha boca com sua língua macia, e engoliu as palavras.
Eu podia ouvir o som incessante do celular, no bolso de sua calça jeans.
Ele passou a mão pelos meus cabelos. Teve dificuldades de separar sua boca da minha para soltar suas palavras.
– Obrigado pela dança – murmurou quando conseguiu respirar, ainda com sua boca colada na minha.
Tentei responder, mas não tive tempo. Zé Antônio saiu do mesmo jeito que chegou.
– Obrigada pelo beijo – foi a resposta que ficou em meu pensamento.
Zé Antônio sumiu da festa em um passe de mágica. No outro dia, tentei encontrá-lo nas ruas vizinhas. Sem sucesso.
Quem era aquela criatura, para quem eu entreguei minha boca sem pudor, que chegara do nada, e me deixara no meio do salão, sem uma pista qualquer, além de ser Zé Antônio?
Francisco tentou reatar nossa parceria na dança, mas a magia que conduzia nossos corpos no mesmo ritmo e tom, esvaíra-se como fumaça no ar.
O gosto do beijo que transformara minha noite em puro mistério, conduzia meus instintos à procura do autor de tamanha arte.
Eu andei pelas redondezas durante dois dias e duas noites. Nada.
Quem estaria do outro lado do celular que insistia tanto em levar José Antônio para longe de mim? Uma namorada ciumenta? Esposa e filhos esperando pelo pai?
Uma chuva fina começou a cair na última noite da festa. Cheguei animada e me uni às outras pessoas aguardando ansiosas o cantor, que transformaria as suas vidas, pelo menos naquele momento.
Ele entrou tocando sua sanfona, sua voz rouca e harmoniosa anunciou sua presença. Minha música de forró favorita ecoou em meus ouvidos, meus olhos foram atraídos instintivamente. Meu corpo parou levado pela surpresa. Ele se posicionou no meio do palco, e eu avistei o homem que aqueceu meu pescoço com aquela mesma voz.
Zé Antônio cantava e conduzia a sanfona com tamanha destreza que sentia meu corpo levitar a cada nota flutuante pelo ar. Meus olhos poderiam até duvidar da imagem que se mostrava sem constrangimento, mas meus sentidos jamais esqueceriam aquela sintonia que suavizavam e aqueciam meus ouvidos.
– Esse sanfoneiro é demais!
Eu ouvi as palavras de Maria ao meu lado. Concordei, sorri com encantamento e fui me aproximando, levada por uma atração cega, desvairada. Quando dei por mim, estava em frente ao palco, magnetizada. O ritmo da música mexia com meu corpo sem que eu sentisse. Meus olhos, tão perto de Zé Antônio, embaçaram-se, a imagem do cantor, em meio a uma nuvem branca, confundia-se. Não entendia bem o que estava acontecendo. Meus olhos lacrimejavam, não sei se devido à neblina que ofuscava minha visão, ou se por pura emoção.
Minhas pálpebras se fecharam com leveza. Enquanto as notas da canção nordestina abalavam o oxigênio que me rodeava, eu respirava, e me embalava em uma áurea mágica, reluzente, envolvente, protetora. E eu dançava.
Sem saber de onde vinham, mãos suaves e seguras alcançaram as minhas, meu corpo atraído por outro corpo, sentiu um calor bom.
– Desculpe se não danço tão bem – meus ouvidos captaram palavras soltas na respiração de alguém que eu podia adivinhar quem era.
A voz do cantor no palco se confundiu com aquela que me embalava em braços determinados, ao mesmo tempo leves.
– Zé Antônio – sussurrei, sem abrir os olhos.
Ele me aproximou mais de seu corpo para me conduzir no ritmo animado da canção.
Aos poucos, diminuiu o movimento de nossos corpos, passou a mão pelos meus cabelos soltos, beijou meu pescoço. Eu virei meu rosto para sentir minha boca na dele. Não queríamos mais nos separar daquele beijo louco, profundo, infinito.
Então, ainda de olhos fechados, eu ouvi as palavras balbuciantes e perturbadoras.
– Obrigado pela dança, Ritinha!
Ele me conduziu suavemente até a música emitir as últimas notas, passou a mão pelos meus cabelos e seu corpo se afastou do meu, sem vontade.
Minhas pálpebras relaxadas se abriram com preguiça. Agora, com minha visão límpida, eu podia ver claramente Zé Antônio caminhando em êxtase até o meio do palco. Ele virou-se para mim com seus olhos misteriosos e seu sorriso ousado, invadindo minhas entranhas.
Eu sorri igual. Senti igual.
Aplausos estremeciam o espaço, gritos eufóricos e assovios espalhavam-se pelo ar.
Ele agradeceu, a banda também.
Zé Antônio deixou o palco caminhando de frente para a plateia. Antes de sair de minha visão límpida, levou seus dedos até a boca e soprou um beijo que só eu vi, ouvi e senti.
Foram muitas outras festas, muitas danças, parcerias com outros dançarinos, muitos outros beijos, mas Zé Antônio, como um personagem de história encantada, estará sempre materializado no meu conto misterioso inscrito com o título: Obrigada pela dança!

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