Ser e viver. Livre do lugar comum

Quando telefonei para Carlinha e a convidei para tomar café comigo, não tinha ideia do que o Universo havia conspirado. Carlinha sabia que quando o convite era para tomar café, o assunto era delicado, principalmente na nossa cafeteria predileta.

Cheguei antes dela, sentei a uma mesa encostada a uma das largas janelas de vidro que abriam minha visão para o mundo lá fora. Apenas algumas pessoas ocupavam outras mesas ao redor. Mas eu nem as percebia.

Enquanto passos apressados levavam sonhos, desejos e planos pela rua que se abria aos meus olhos, eu pensava nos meus.

Aí, minha mente retomou o dia em que, enquanto subia a rua onde moro levando duas bolsas de supermercado ligeiramente pesadas, distribuídas nas minhas duas mãos, observei aquele rapaz que caminhava logo atrás de mim, pela outra calçada. Olhei, admirei rapidamente, e voltei meu rosto para seguir meu caminho acompanhada dos meus pensamentos.

— Posso ajudar – ouvi a voz rouca e harmoniosa, bem perto do meu ouvido esquerdo.

Virei um pouco surpresa.

— Oi — respondi parando ao lado dele. — Toda ajuda é bem vinda.

Ele pegou as duas sacolas das minhas mãos, sem dar tempo para que eu escolhesse carregar alguma .

— Você mora aqui na rua ? —  perguntei enquanto continuávamos a subir.

— Cheguei há umas semanas, estou naquele prédio —  ele se virou para mostrar com um movimento de sua cabeça o edifício pelo qual já havíamos passado.

— Eu moro no que fica no fim da rua, vamos ter que encarar mais um pouco a ladeira — eu informei sorrindo para que a subida ficasse mais agradável.

Ele achou graça.

—  Breno — ele se apresentou.

— Flor — eu fiz o mesmo.

— Mora aqui há muito tempo ?

— Dois anos e você ?

— Eu acabei de chegar por aqui, estou estudando na Inglaterra.

—  Estudando o quê?

— Música.

— Que máximo ! Está de férias ?

— Sim. Não via minha família há alguns anos.

— Gosta de lá ?

—  Sim, mas sinto falta de uns sorrisos como o seu por lá.

Fiquei lisongeada. Voltei meus olhos para ele e encontrei duas esferas escuras brilhantes que faiscavam na minha direção. Escancarei meu sorriso.

Chegamos no portão do meu prédio. Ele parou mas não me entregou as bolsas.

— Estão pesadas, posso levar até o seu apartamento —  ele justificou.

— Não precisa — eu achei melhor ser educada e precavida. – Tem elevador.

— Então levo até o elevador —  ele insistiu.

Eu respondi pegando a chave do portão na minha bolsa e abrindo espaço para ele passar.

— Eu vejo você de novo ? — ele perguntou enquanto esperávamos a pequena máquina descer. — Desculpe, eu arrisquei, não sei nem se você tem compromisso…

— Se você quiser… — não esperei que ele terminasse. — Meu compromisso atualmente é comigo mesma.

— Quando e onde ? — ele perguntou com segurança.

— Meu apartamento é o 401. Estou em casa hoje à noite.

Breno se abriu em um largo sorriso e iluminou seu semblante.

— Chego às oito — ele definiu a hora.

O elevador parou em frente a nós, abriu a porta, ele colocou as sacolas dentro.

— Obrigada – eu agradeci sem saber o que dizer exatamente.

— Posso trazer um vinho ? —  ele arriscou.

— Suave — eu concordei.

Breno saiu sem muitas palavras, apenas um profundo olhar antes da porta do elevador se fechar.

Cheguei em casa sem saber bem o que tinha acontecido. À noite, quando Breno entrou com a garrafa de vinho na mão e eu fechei a porta atrás de mim, deparei com os olhos dele tão pertos dos meus, que não tivemos escolha. Somente o objeto de madeira atrás de nós, conseguiu sustentar os nossos corpos que se grudavam e faiscavam através de nossas bocas ansiosas e lábios sedentos.

Vieram mais noites, mais beijos, mais vinho, e tudo mais que nossos sentidos nos inspirava a explorar e viver. Outros dias saíamos juntos para visitar espaços culturais, passear na praia, ou irmos a algum lugar dançar. Algumas noites, Breno levava o violão e cantava as músicas que conhecíamos. Tínhamos gostos similares, mesmo com a nossa diferença de idade.

Em um desses dias, ele tocou e cantou uma canção que havia feito para mim. A letra está na minha memória com todas as notas e palavras.

Então, descobri algo sobre ele, e precisava desabafar.

— Oi, amiga ! — Carlinha me acordou daquele breve devaneio. — Desculpe a demora, cheguei da academia, tomei um banho e vim logo pra cá.

— Eu sabia que você vinha – acrescentei com meu sorriso agradecido.

Carlinha sentou -se em frente a mim. A garçonete se aproximou, pedimos nosso café e o bolo especial para dietas.

— Você está bem ? — ela perguntou para se certificar.

Eu levei uns poucos segundos para formular a resposta. Respirei fundo.

— Estou muito bem — respondi finalmente.

— Então o assunto é bom – ela deduziu.

— Depende do ponto de vista – afirmei.

— Amiga, qual é a surpresa ?

Antes que eu continuasse com meu discurso, a garçonete se aproximou e nos serviu amavelmente. Depois que agradecemos, ela se afastou.

— Mas, e você como está ? —  achei melhor começar por ela.

— Estou ótima ! Investindo em mim antes de qualquer homem tentar entrar no meu caminho. Nós que já estamos no 5.0 precisamos ser mais seletivas. E no momento, estou mais feliz com a chegada do meu filho. Parece incrível, somos vizinhas e ainda não consegui apresentar a você. Ele tem saído muito esses dias, disse que está matando a saudade —  ela terminou rindo.

—  Normal, depois de quatro anos fora da cidade dele.

— Sim. Mas acho mesmo que ele está é saindo com alguém.

— Você se incomoda com isso ? – perguntei enquanto saboreava mais um pedaço do meu bolo.

— Bem, depende de com quem ele está saindo – ela respondeu depois de pensar uns dois segundos. — Pelo menos, ele está mais alegre, passa o tempo que está em casa tocando violão. Fico preocupada porque ele vai voltar pra Inglaterra, e Breno se apega muito às pessoas.

— Você acha que isso não é bom ?

— Estar saindo com alguém ou se apegar facilmente ?

— As duas coisas. Uma leva à outra.

Carlinha parou de falar e olhou com curiosidade para mim.

—  Mas, vamos falar de você agora ? Qual é a surpresa ? —  continuou conduzindo sua xícara para mais um gole do café.

Eu engoli um pedaço do meu bolo para poder liberar as palavras.

— Você sabe que eu sempre achei que não ia mais me apaixonar. Até que…

Parei ao ver os olhos ansiosos de Carlinha com gostinho de ‘e o que mais’ ?

Respirei fundo. Continuei.

— Conheci alguém que me despertou pra vida, uma vida mais autêntica, mais jovem, mais leve.

Carlinha recostou-se na cadeira, acho que para se recuperar da surpresa.

— E… — ela queria saber do depois.

Naquele momento eu estava interessada no antes.

— Eu nunca pensei que poderia me apaixonar pelo homem que me ajudou a carregar minhas sacolas pesadas até a minha casa.

— Sério ? Como foi isso ?

— Não precisei me maquiar, nem escolher a melhor roupa e o melhor penteado. Só precisei ir ao supermercado fazer umas compras.

— Bem, isso pode ser uma nova teoria —  afirmou minha amiga com seu sorriso de quem está sempre em busca de novas descobertas.

— A prática tem sido muito mais profunda do que a teoria. Estamos vivendo cada dia como se fosse o único.

— Quem é esse que iluminou você  e fez seus olhos brilharem mais ainda ?

— Breno — respondi olhando para ela com as letras levemente colocadas em cada sílaba.

Carlinha parou de mastigar, franziu a testa à procura de mais esclarecimento e abriu mais seus olhos quando entendeu.

— Breninho? — ela afirmou querendo se certificar.

Eu afirmei com um suave movimento do rosto.

Ela se recostou na cadeira, acho que para se recuperar da surpresa.

— Quando descobrimos, resolvemos deixar fluir sem expectativas para o futuro,  e sem nos preocupar com o os limites previsíveis dos lugares comuns que tentam nos prender em gaiolas. Aliás, ultrapassar limites é o meu maior desafio !

Carlinha ficou em silêncio, seu olhar construía mais uma história.

Ao sairmos da cafeteria, nos despedimos com um abraço longo e forte, e quando nossos olhos se encontraram, não precisamos de palavras.

Naquela noite, Breno tocou e cantou a minha música.

Nossos beijos loucos, sussurros de desejo e risos de prazer ultrapassavam todos os limites de ser e viver.

 

 

 

 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima